segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A decisão


O verão foi implacável. Os dias mais longos prolongavam o calor, que adentrava a noite aquecendo sonhos, desilusões, amores, paixões, vontades e ânimos. Em que pese toda essa energia aparentemente incontrolável, e em alguns momentos o era de fato, os dias eram lindos. A abóbada celeste se ampliava, parecendo não ter fim; a luminosidade a fazia brilhar como pura safira sobre toda aquela imensidão de lagoas, mares e montanhas, dando a todo o conjunto uma reluzente e nítida transparência de cores; o verde da floresta movia-se como uma enorme alcatifa de veludo, crispado aqui e ali pelos tépidos ventos. A cada dia o calor parecia maior.
            Eu percebia que a cada dia que passava, assim como o calor, minha ansiedade e angústia cresciam. Era um dia a menos com Antônio. Ele iria embora definitivamente no começo de março. Não havíamos ainda conversado sobre nosso futuro, sobre o que faríamos. Ele parecia se recolher em si mesmo e reservar-se a si somente a responsabilidade por essa decisão. Não dizia abertamente o que tencionava fazer, mas eu sentia que, ao que tudo indicava, eu não estava em seus planos para o futuro.
            Comecei a raciocinar que seu afastamento de casa por longo tempo, se por um lado indicaria a intenção de não mais voltar, poderia bem ter servido como um momento para avaliar a possibilidade de rever a situação a favor de uma reconciliação. Afinal, as tensões haviam sido aliviadas, as rusgas esquecidas, as mágoas perdoadas. Esse era o quadro que teimava em se apresentar à minha aguçada percepção.
            Por isso a partir de certo dia, nem lembro exatamente quando, passei a querer saber o que ele faria ao chegar em sua casa. Pediria o divórcio? Procuraria a reconciliação com a mulher? Que faria? Era óbvio que pelo menos ao retorno ele teria que lá fazer pousada. Sua situação financeira estava aparentemente equilibrada, mas seguramente não permitiria que ele fizesse gastos adicionais, como alugar um lugar para morar e mobiliá-lo de acordo caso resolvesse deixar a mulher. Que faria?
Todos os dias eu lhe trazia essa dúvida que me estava levando às raias da insanidade. Ele, como sempre, zangava-se comigo; alegava sua ojeriza às pressões. Dizia que tão logo tivesse uma resposta definitiva eu seria a primeira a tomar conhecimento; e, de quebra, enfatizava que reconhecia que eu não era obrigada a esperar passivamente sua decisão. Em outras palavras, deixava-me à vontade para desmanchar com ele. Transmitia-me isso claramente, e concluía: -“Entenderei perfeitamente”! Era óbvio que se aproveitava de tudo o que eu sentia por ele. Sabia que eu não seria capaz. Ou isso ou ele estaria sacrificando seu coração em função do que a razão lhe impunha. Eu saberia em breve.
A dois ou três dias de sua partida, no lotação, ele me comunicou sua decisão.
            -“Olha, Dô, eu pensei bastante e resolvi que o melhor a fazer é desmancharmos”.
            Meus olhos encheram-se de lágrimas, mas eu procurava me manter calma. Só a idéia de ficar longe dele me dava náuseas. Meu castelo começou a desmoronar bem diante de mim sem que eu nada pudesse fazer, embora tentasse. Ele continuou:
            -“Não acho que seja honesto seguir esse namoro uma vez que não sei o que acontecerá quando voltar para casa”.
Ele estava visivelmente abalado e pensei ou imaginei ter visto uma umidade excessiva em seu olhar. Não havia muita gente no ônibus, de modo que podíamos conversar à vontade. Até hoje suspeito que ele tenha resolvido ter essa conversa ali a fim de inibir qualquer atitude mais temperamental de minha parte. Mal sabia ele que minhas forças chegavam à exaustão. A única coisa que o ônibus estava conseguindo inibir era minha vontade de chorar compulsivamente.
-“Estou sendo o mais franco que posso com você”, foi sua última frase.
Abri a bolsa e puxei de lá um lenço de papel para enxugar o rosto. Pensei por alguns segundos em tudo aquilo e concluí que o assunto era mesmo uma complicação só. Embora meu egoísmo de filha única estivesse sempre a postos para entrar em ação e exigir para mim tudo o que entendia meu de direito, sabia que para ele deveria também estar sendo muito difícil me deixar. Eu não tinha a menor dúvida de que ele me amava. Sua visível perturbação o denunciava. Isso, preciso reconhecer, era uma gota de alívio para mim. As saudades inexoráveis se achegavam por antecipação. Dali a poucas horas ele iria embora sem sabermos se um dia voltaríamos a nos encontrar.
Chegamos à minha casa ao início da noite. Mamãe nos fez um café bem forte e momentaneamente esquecemos a tragédia que se abatia sobre nós. Eu não sofria sozinha; nele também doía. Procurávamos ficar juntos, trocar beijos, abraços, olhares... A única coisa da qual não falávamos era de planos. Não tínhamos futuro. Estávamos repletos de passado, um delicioso passado; ao passo que em poucas horas nosso futuro chegaria para nos alvejar de morte enquanto casal.
Éramos como moribundos do amor, ainda que ele pudesse nos salvar se a distância se tornasse um fardo demasiado pesado para suportar. Todas as explicações que eu buscava se perdiam nas palavras ditas por ele no ônibus. Ele estaria sendo impelido a desmanchar um relacionamento – na verdade um casamento – e iniciar outro. Sim, porque se porventura ele me convidasse a morar com ele em sua cidade, num eventual fim de seu casamento, eu iria como sua mulher. Para mim essa possibilidade parecia cada vez mais remota.

O preço das escolhas

Conforme comentei noutro post, os ventos mudaram, e com eles a vida tomou novo rumo, cheio de cores e possibilidades, boas e ruins. É como dizem, "não existe almoço grátis".


A propósito, nos últimos dias, a guerra-fria foi severamente ameaçada. A equação é simples: enquanto a balança não pende para um dos lados, o equilíbrio se mantém; mas basta um sopro para que um dos lados pese e tudo vá pelos ares.

Por Deus que não compartilho mais tanto da impetuosidade que assola com veemência as reações da minha querida Dolores, porquanto o cenário demanda cautela e estratégia, haja vista o fato de que há muita coisa envolvida. Só que é prudente não confundir estratégia com inércia.

O simples fato de não reagir aos fatos imediatamente não significa que está tudo bem, tudo aceito. Por sinal, os impulsivos são previsíveis e facilmente derrotados; já os parcimoniosos agem enquanto as águas estão aparentemente calmas.

Entretanto, até quando se lida com guerra-fria [envolvendo pessoas], é necessário que haja ética. Usar de baixaria e subtefúrgios sórdidos é a maior prova de imaturidade e, ouso dizer, incapacidade de solucionar de fato a situação. Não há demérito em admitir a derrota; vidas e recursos múltiplos são poupados quando se coloca de lado o orgulho e a vaidade.

Infelizmente, há quem prefira a morte à aceitação, ainda que haja prejuízos incalculáveis em jogo.

sábado, 13 de outubro de 2012

Tempestade à vista


            Sempre fui de me apegar às pessoas. Por isso sempre tive muitos amigos e amigas. Com os namorados não era diferente. Mas com Antônio era.
            Tudo com ele era bem diferente. Meu apego a ele teve uma reação na mesma proporção, eu diria. Eu soube disso quando transcorria uma tarde de sexta.
            Eu estava na agência numa atividade frenética. Vendíamos pacotes turísticos e a procura tornara-se cada vez maior. Aproximava-se o verão, o que bem explicava toda aquela trabalheira. O telefone não parava de tocar e eu era obrigada a me virar entre ligações, papéis, e-mails e clientes que entravam e saiam. No final da tarde houve uma relativa trégua e aproveitei para esticar as pernas sobre minha mesa.
            Qual não foi minha surpresa quando a porta de minha sala abriu e por ela Antônio mete a cabeça “fazendo uso” daquele seu sorriso encantador e cativante. De um salto pus-me de pé e, toda desajeitada e lutando para parecer asseada e bem cuidada, passei as mãos nos cabelos desgrenhados e corri para ele. Abraçou-me carinhosamente usando apenas um braço e, dando um passo para trás e mantendo uma das mãos escondida nas costas, disse que me trazia uma surpresa. Presumo que meus olhos brilharam porque lembro que meu coração dava cambalhotas de alegria e felicidade.
            Veio lentamente para mais perto de mim e afinal me deixou ver o que trazia. Era uma caixa embrulhada para presente em papel vermelho e fita branca. Um adesivo em forma de coração prendia o laço da fita ao volume, e sobre o coraçãozinho estava escrito: “Pra você”. Tomei-a de suas mãos e a abri; dentro uma variedade de chocolates finos. Estava tão agradada com aquela dupla surpresa que não tive outra coisa a fazer senão agradecê-lo com um longo e molhado beijo.
            Depois explicou-me que no hospital tudo ia bem e que por isso conseguira sair mais cedo. Uma hora depois caiu a noite e saímos todos da agência para um drinque. Eu estava extasiada; sentia-me completa, inteira, plena, mulher. A companhia de Antônio dava sentido à minha vida e uma sensação de segurança que eu jamais experimentara. Ele não era ciumento e tomou como seus meus mais queridos e amados amigos.
            Os dias se seguiam como um belo rio de águas plácidas e margens ajardinadas. Eu afinal tinha paz, tranqüilidade, alegria e plenitude. Que poderia mais querer? Antônio às vezes ia à minha casa e à casa de outros de meus parentes, tios, primos, avós. Minha mãe nutria por ele uma admiração especial e, quando o encontrava, o cercava de todas as paparicações possíveis. Ao início ele se sentia acanhado, mas depois resolveu tirar um bom proveito de seus agrados. Meu pai, apesar de seu jeitão esquisito, era grato a ele por ter lutado com tanto zelo pelo restabelecimento da saúde de seu pai, meu avô. E, para falar a verdade, Antônio rompera todas as eventuais barreiras que porventura pudessem existir antes mesmo de iniciarmos o namoro – meus familiares o idolatravam.
            Aproximava-se dezembro e as festas de fim de ano. Antônio já me avisara, quando de sua primeira viagem para visitar os filhos, que voltaria a vê-los no ano novo. Apesar de nosso relacionamento estar mais firme e do grau de confiança que se estabelecera entre nós, meus sentimentos quanto à questão dos filhos em nada amainara. Meus problemas iniciavam tão logo a ideia dos filhos me trazia a essa realidade inexorável. Só em pensar nisso tinha náuseas e uma enorme sensação de impotência se apoderava de mim. Era uma coisa com a qual eu não sabia lidar e duvido mesmo que desejasse lidar. Via essa situação da forma mais negativa possível.
            Eu não tinha a menor ideia de como iam as coisas do “outro lado”, e nem queria saber. Eu pensava apenas o seguinte: - esse cara vai ser meu de vez custe o que custar. Não abrirei mão dele por nada desse mundo. Eu tinha a segura e firme sensação de que ele já não conseguiria viver sem mim, mas a verdade é que o ambiente em que vivíamos era todo propício.
O mesmo não se poderia dizer de seu ambiente nativo. Eu não sabia a que influências ele se sujeitava, se tinha a coragem necessária para levar a cabo o que se propunha, isto é, divorciar-se. Acho que nem ele pensava naquilo, e é bem possível que estivesse apenas curtindo uma temporada comigo, uma mulher linda, inteligente, bem relacionada.
Meus problemas eram mais sérios do que eu mesma supunha, e só viria a conhecê-los plenamente em pouco tempo. Eram problemas que eu carregava comigo como uma tralha emocional mal resolvida e que só viriam a se revelar em situações de estresse afetivo e emocional de outra origem, como numa vida em que eventualmente coabitasse com um companheiro, por exemplo.
Porém, mais uma vez minha confiança foi às alturas quando Antônio me anunciou: não mais viajaria nas festas de fim de ano para ver os filhos; ficaria comigo.
O que me passou despercebido foi o fato de que ele iria embora de vez no final de fevereiro próximo. Não atentei para esse detalhe. Ele agia como se fosse passar mais tempo comigo apenas para compensar a proximidade do fim definitivo. No fundo eu tinha esse evento em perspectiva, mas o guardava em algum lugar da mente onde não o pudesse apreciar. Tanto que quando fomos obrigados a encará-lo os desentendimentos entre nós se amiudaram. Eu começaria em breve a pressioná-lo como jamais fizera. Dias negros estavam para chegar.   

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Rejeições


Minha intemperança chegou ao ponto – somente agora lembrei-me de mais essa incontinência – de eu determinar que ele deveria me ligar todos os dias durante os quatro dias em que lá estivesse.
            É claro que ele menosprezou solenemente esta minha “determinação”: - ligou-me apenas uma vez, quando já ia o segundo dia. Contou-me que tudo estava bem e que sentia saudades de mim. Senti em sua voz que seu coração falava. Isso significava que todos os meus temores eram infundados. Derreti-me em declarações de amor e desejos de que logo voltasse. Sóbria, utilizando-me de minha sensatez e perspicácia, nada cobrei. Confesso que uma leve apreensão me invadiu nos dois dias que se seguiram por ele não ter ligado, mas procurei afastar esses pensamentos trabalhando, estudando e saindo com amigos nas horas de folga.
            Ele chegou na segunda – viajara na quinta da semana anterior. Eu sabia em qual companhia aérea e a hora em que ele chegaria. Queria fazer-lhe uma surpresa. Pedi a Mariana, a mais louca de minhas amigas, que comigo fosse ao aeroporto buscá-lo. Ela topou na hora. Ainda bem que o voo chegaria à tarde, o turno em que trabalhava na agência turística de Mariana. O tempo estava quente e no céu brilhava um azul tão anil que nos tirava o fôlego.
            Quando Antônio apareceu no portão de desembarque e nos viu sorridentes e sapecas, abriu um amplo e franco sorriso. Abracei-o forte e ele puxou-me pela cintura encostando seu corpo contra o meu suavemente, mas firme. Assim ficamos alguns eternos segundos e senti-me tão acolhida e aceita que tudo o que acontecera dias antes parecia agora uma grande tolice. Eu não sabia então, mas o futuro me mostraria que eu não estava preparada para me relacionar com um homem que já fora casado.
            Nós o levamos à moradia do hospital e Mariana disse-me que eu não mais precisaria voltar à agência. Fiquei com ele o resto da tarde e à noite. Não toquei em assunto relacionado àquela viagem. Eu não queria saber de seus filhos nem como eles estavam. Na verdade, hoje sei, sentia um enorme ciúme deles. A verdade é que era mais do que ciúmes; desejava que eles não existissem.
Se me perguntassem por que eu não saberia que resposta dar. Não era minha intenção ter filhos um dia e, portanto, a explicação não seria por aí. Estava, de fato, dividida porque eu desejava ardentemente que ele fosse um cara livre e desimpedido. Queria que ele jamais houvesse sido casado um dia, que não tivesse filhos. Sou obrigada a admitir que eu preferiria que ele não tivesse um passado.
Eu também ainda não sabia, mas estava semeando em meu próprio coração um sentimento de rejeição por pessoas que lhe eram extremamente caras. Eu não podia esperar que homem nenhum renegasse sua prole para satisfazer os caprichos de uma mulher, mesmo que a amasse muito. Nenhum amor pode cobrar tão elevado tributo. Porém, eu tinha apenas 20 ou 21 anos à época. Sendo filha única de um casal problemático, eu mesma era um poço de sentimentos gerados pela rejeição, pelo desamor, e sensação de abandono afetivo. Toda essa carga estava para ser lançada naquele relacionamento que, no momento, era perfeito. A prova viria no futuro.
Basicamente não sou uma mulher ciumenta. Meus dotes naturais, sob todos os aspectos do que uma mulher possa oferecer de atraente a um homem, me dão a segurança necessária em relacionamentos amorosos. Sandro e Kleber, meus dois últimos namorados, até hoje seriam capazes de voltar para mim se assim o quisesse. Kleber tornara-se um irmão para mim, mas posso assegurar que a recíproca não seria verdadeira. Para ele eu ainda seria a mulher com quem estaria até hoje. Sandro queria ser meu marido, mas não via nele a maturidade e a inteligência que buscava em um homem.
Com Antônio eu vivia uma experiência completamente nova. Sendo dezessete anos mais velho, era o homem com quem nunca sonhara mas o arrebatamento com que me conquistou em sua simplicidade e inocência me dizia que era ele a pessoa certa para mim. Esse sentimento era tão forte que eu arriscava dizer que ele era o homem de minha vida. Quando certa vez lhe disse isso, ele ingenuamente me perguntou: -“E existe isso de ‘homem da vida’ de alguém”? Às vezes dizemos tanto uma coisa que acabamos por acreditar nela, e no final acontecem duas coisas: frustramo-nos quando descobrimos que de fato isso não existe e ajudamos a contribuir para que o outro desacredite em quem posteriormente o disser. Não que desilusões não tenham o seu lado positivo, mas quando ela flui e vem através de nós nos causa um mal estar desnecessário e entristecedor.
Enquanto estávamos aqui, em minha cidade, sob a proteção de meu meio e dos meus, fomos felizes além do que se possa merecer. Cada dia eu deixava de lembrar como deveria que aquela situação era temporária. Meu esquecimento quanto a isso só é atribuível a uma proteção de que necessitava para viver aquele amor. Eu eternizava os momentos, os lugares, os encontros, as noites em que dormia com ele, tudo. Nada daquilo acabaria; permaneceria exatamente da mesma forma.
Certa vez, na boate, Mariana, que em suas loucuras arranjava tantos namorados quantos pudesse e desse conta, disse em alto e bom som: -“Um dia, Dô vai casar com Antônio e sempre iremos visitá-los nas férias”! Ele permaneceu calado, mas seu olhar para mim me transmitiu uma sensação de incerteza e indefinição que até então não experimentara.
Engoli a cerveja e saí dançando como se nada houvesse acontecido.     

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A viagem


          Depois que me confessou ainda ser casado de direito, fiquei numa dúvida enorme quanto ao "de fato". Que relação ainda teria ele com a mulher? O que conversavam? Sim, porque era óbvio que deviam se comunicar periodicamente. Afinal, tinham filhos menores; pelo menos sobre isso deviam falar. Mas, será que ficavam só nisso? Será que ela insistia para que ele reconsiderasse a idéia do divórcio? Se sim, como ele reagiria? O que respondia? Nutriria esperanças na outra?
          Todas as minhas apreensões se tornaram para mim um inferno quando certo dia ele anunciou que viajaria para rever os filhos. Ficaria fora por quatro dias. Era demais para mim; não me contive: -"Você não tem intenção de ficar com essa mulher, não é? " Ele respondeu sem demora: -"Já te falei, está tudo muito abalado entre nós. Nem que eu quisesse..." Não era nem de perto a resposta que eu esperava e queria ouvir. Fiquei sem entender se sua vontade era estar com a mulher e não o faria porque ela não toparia, ou se o abalo também era seu. Optei por não insistir no assunto para evitar ouvir o que não queria ou o que me desagradaria. 
          Poucos dias depois ele me convidou a ir à moradia para um churrasco. Ele e os amigos queriam dar uma relaxada na labuta pesada do hospital. Foi comida e bebida a valer. Tanto que lá pelas tantas insinuei, num momento em que nos afastamos um pouco mais do grupo, que considerava um absurdo aquela viagem. Ele nada disse e isso me atiçou ainda mais o apetite pela verdade. Eu tinha entornado uns bons copos de cerveja e minhas reservas e contenções estavam lá no banheiro, no vaso sanitário. Vinha de lá bufando por dentro. Intimamente queria chutar o pau da barraca, meter o pé na jaca. "Foda-se!", pensei. "Quem ele pensa que é?" E já fui virando outro tanto goela abaixo. Era o que queria – ter a coragem de dizer tudo o que pensava sobre aquela situação, o que não faria em estado sóbrio. 
          "Não acredito que você e essa mulher não tenham nada quando você estiver por lá", disse provocando. Ele me puxou pelo braço e levou-me para a escada. O bate-boca foi acalorado, e pela primeira vez o vi contrariado. Estava frustrado e visivelmente incomodado. Minhas cobranças e desconfiança eram demais para ele. Soube que seu aborrecimento não se dava por eu estar desconfiada quando ele disse: -"Você devia se lembrar que eu não queria! Eu não queria ter começado isso! Foi você quem insistiu!" E meneava a cabeça exalando um cristalino arrependimento. Estava bravo comigo. Percebi nitidamente seu asco por eu estar lhe pressionando, tirando-lhe a paz. 
          Se não houvesse bebido pararia a discussão ali mesmo. De fato, nem a teria iniciado. Mas não. Liberada de minhas auto-impostas repressões, ia à forra. Que se aborrecesse, ora essa! Eu não estava gostando daquilo tudo e não havia porque me tolher de buscar o que já considerava meu por direito. Precisava ter certeza de que nada aconteceria naquela viagem. Em nenhum momento tive receio de que ele terminasse comigo; nem pensei nessa possibilidade. Se estivesse sóbria teria pensado. Não dava a mínima para sua frustração, para sua contrariedade, para o que quer que fosse. Ele teria que me prometer que dormiria noutro quarto durante os dias com os filhos.
          É obvio que prometeu tudo o que eu queria que prometesse. Somente ao me recuperar do pilequinho, no dia seguinte, é que percebi o que ocorrera de fato. Tínhamos um relacionamento recentemente iniciado, frágil, ainda sem a consistência que o tempo lhe empresta; a pressão que fiz pusera e ainda punha tudo em risco. O que ele mais queria era sossego, paz, tranqüilidade; e eu bisonhamente lhe tirara tudo isso na noite anterior. Acordei com a nítida sensação de que tudo estaria terminado mal começara. Precisava arranjar um jeito de consertar o resultado de minha intempestividade. 

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Colaboradora!

Dolores conhece bem os dramas que permeiam a minha vida afetiva. Por sinal, alertou-me inúmeras vezes acerca das intenções protelatórias de um certo gajo, que eu ouvia - a contragosto - porém não aplicava os conselhos na prática.

Certa vez, lembro bem, chegou a comentar que eu escrevia melhor quando estava envolta em sombras e dores. Obviamente, não se tratava de incentivo à permanência naquela situação; era, tão somente, uma constatação. 

Ao tomar conhecimento da reviravolta na minha história, ficou tão extasiada que disse "isso precisa ser escrito, mas não no blog". E foi aí que fui parar no livro que será lançado em breve: "Encontrei quando menos esperava". Importante destacar que, por questões outras, o texto da própria Dolores não constará da obra, o que é uma pena, pois tenho certeza de que seria uma gratíssima surpresa, visto que seus "causos" afetivos são de aquecer e acelerar o coração!

A ideia da minha querida, dona deste endereço, é que eu faça contribuições periódicas ao seu blog. Nem preciso dizer o quanto me honra um convite do gênero, já que a minha novela, perto das diversas dela, é quase um remake mexicano, rsrs. Hummmm, e agora que percebi uma falha gravíssima: não me apresentei, de intróito.

Sou Tatiana Lambert, tenho 31 anos, paulista de nascimento, cearense de coração, advogada por profissão, apaixonada por moda e me tornei blogueira por acaso, quando resolvi traduzir em palavras e extravasar os sentimentos – bons ou ruins – que me conduzem pela vida. O meu blog chama-se "Muitas Ideias Numa Única Palavra".

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

A confissão


DESDE aquele momento em que se deixou levar por meu sentimento, Antonio tornou-se meu companheiro constante. Saíamos a nos divertir com amigos ou sozinhos; viajávamos ao interior em feriados prolongados e quando ele gozava alguma folga no hospital; enfim, apeguei-me progressivamente mais a ele e ele a mim.
            Não foi difícil introduzi-lo no convívio de meus familiares, já que todos o conheciam pelo fato de ter cuidado de meu avô durante seu internamento. Todos haviam se afeiçoado a ele, e descobri que os motivos para minha antipatia inicial não se sustentavam nas evidências – ele havia sido um médico dedicado e amoroso para com todos e principalmente para vovô. Muitas vezes o levei comigo à casa de meus avós quando ia visitá-los e ele aproveitava para conversar com seu paciente. Queria saber como se sentia e se estava adaptando-se bem à cadeira de rodas.  
            Tudo ia muito bem até o dia em que caminhávamos pela rua saindo da moradia e ele repentinamente estacou e puxou-me pelo braço. Encarou-me nos olhos repousando suavemente suas mãos sobre meus ombros e disse: -“Eu ainda estou casado”.
            Um frio me correu a espinha e senti as pernas pesarem. Apesar de ele ser um homem maduro, nunca havia pensado na possibilidade de ele ser comprometido. Ele havia me relatado que pouco antes de me conhecer desmanchara um namoro de três anos. Retrospectivamente considerei que sua resistência às minhas investidas bem poderia estar relacionada com aquela relação que recentemente findara, e ele confirmou. Disse-me que quando me conhecera acabara de despachar a namorada e sentia-se cansado dos “vai-e-vem do amor”. Morri de rir quando ele usou tal expressão, mas conseguiu me fazer entender o que sentia então.
            Agora ele estava ali, em meio à multidão da rua, olhando para mim e confessando seu inesperado estado civil. Ficamos naquela posição por pouco tempo, mas a mim me pareceu que o tempo parara, ou que uma espécie de eternidade suspensa iniciara. Empurrei-o para dentro de uma livraria próxima e ele então continuou.
            Disse-me que quando viera para cá seu casamento estava virtualmente acabado, e que não regularizara a situação do ponto de vista legal porque sabia que sua mulher iria litigar e que isso em nada ajudaria durante seu estágio no hospital. Queria tranqüilidade para estudar e trabalhar. Além disso, havia as crianças; não tivera tempo de conversar com elas sobre o que estava acontecendo entre seus pais. Pesava também a questão financeira; não seria aquele o momento de pedir o divórcio, enfim.
            A namorada que tivera e da qual se livrara há pouco era, na verdade, uma amante. O mau estado de seu casamento abria-lhe a esse tipo de relacionamento sustentado basicamente pelo sexo. Estava cansado, de fato. Estivera apaixonado por ela por algum tempo, ao início do caso, mas descobrira que era insaciável. Um homem lhe seria pouco. Até que não foi de todo mau essa descoberta – fora-se-lhe o encanto e a magia.
            Em todo caso, queria deixar claro para mim em que pé estavam as coisas. Não havia me contado o caso desde o início porque não mais se sentia casado, ainda que admitisse que isso de nada valia sem a regularização legar e judicial da situação. Por fim, foi categórico: -“Não sei o que vai acontecer quando voltar para casa...”
            Não dei uma palavra durante nem após suas explicações. Tudo me parecia muito louco e jamais acontecera nada daquilo comigo. Meu silêncio deve tê-lo perturbado de alguma forma porque disse: -“O que você decidir, assim será”. Em suma, ele punha sobre mim o ônus de decidir se seguiríamos juntos ou não. Eu não sabia o que pensar depois dessa última frase. Poderia tirar inúmeras conclusões a partir dela, algumas corretas, outras nem tanto; e por isso tive medo.
            Tive medo, por exemplo, de que aquela transferência de responsabilidade significasse minha pouca importância em sua vida; tive medo de que ele repensasse sua canseira com os “vai-e-vem do amor” e resolvesse, sob a mínima pressão, terminar tudo; tive medo do que iria nos acontecer no futuro e do que iria me acontecer caso tomasse uma decisão precipitada; enfim, nada queria dizer ou insinuar.
          Mantive-me em silêncio; peguei sua mão, virei-me para a saída e o puxei comigo. Continuamos a andar em direção a nosso destino – íamos almoçar num belo restaurante próximo. Voltaríamos a falar sobre tudo aquilo noutra oportunidade, provavelmente quando chegasse o momento de ele partir de volta à sua cidade.