quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A viagem


          Depois que me confessou ainda ser casado de direito, fiquei numa dúvida enorme quanto ao "de fato". Que relação ainda teria ele com a mulher? O que conversavam? Sim, porque era óbvio que deviam se comunicar periodicamente. Afinal, tinham filhos menores; pelo menos sobre isso deviam falar. Mas, será que ficavam só nisso? Será que ela insistia para que ele reconsiderasse a idéia do divórcio? Se sim, como ele reagiria? O que respondia? Nutriria esperanças na outra?
          Todas as minhas apreensões se tornaram para mim um inferno quando certo dia ele anunciou que viajaria para rever os filhos. Ficaria fora por quatro dias. Era demais para mim; não me contive: -"Você não tem intenção de ficar com essa mulher, não é? " Ele respondeu sem demora: -"Já te falei, está tudo muito abalado entre nós. Nem que eu quisesse..." Não era nem de perto a resposta que eu esperava e queria ouvir. Fiquei sem entender se sua vontade era estar com a mulher e não o faria porque ela não toparia, ou se o abalo também era seu. Optei por não insistir no assunto para evitar ouvir o que não queria ou o que me desagradaria. 
          Poucos dias depois ele me convidou a ir à moradia para um churrasco. Ele e os amigos queriam dar uma relaxada na labuta pesada do hospital. Foi comida e bebida a valer. Tanto que lá pelas tantas insinuei, num momento em que nos afastamos um pouco mais do grupo, que considerava um absurdo aquela viagem. Ele nada disse e isso me atiçou ainda mais o apetite pela verdade. Eu tinha entornado uns bons copos de cerveja e minhas reservas e contenções estavam lá no banheiro, no vaso sanitário. Vinha de lá bufando por dentro. Intimamente queria chutar o pau da barraca, meter o pé na jaca. "Foda-se!", pensei. "Quem ele pensa que é?" E já fui virando outro tanto goela abaixo. Era o que queria – ter a coragem de dizer tudo o que pensava sobre aquela situação, o que não faria em estado sóbrio. 
          "Não acredito que você e essa mulher não tenham nada quando você estiver por lá", disse provocando. Ele me puxou pelo braço e levou-me para a escada. O bate-boca foi acalorado, e pela primeira vez o vi contrariado. Estava frustrado e visivelmente incomodado. Minhas cobranças e desconfiança eram demais para ele. Soube que seu aborrecimento não se dava por eu estar desconfiada quando ele disse: -"Você devia se lembrar que eu não queria! Eu não queria ter começado isso! Foi você quem insistiu!" E meneava a cabeça exalando um cristalino arrependimento. Estava bravo comigo. Percebi nitidamente seu asco por eu estar lhe pressionando, tirando-lhe a paz. 
          Se não houvesse bebido pararia a discussão ali mesmo. De fato, nem a teria iniciado. Mas não. Liberada de minhas auto-impostas repressões, ia à forra. Que se aborrecesse, ora essa! Eu não estava gostando daquilo tudo e não havia porque me tolher de buscar o que já considerava meu por direito. Precisava ter certeza de que nada aconteceria naquela viagem. Em nenhum momento tive receio de que ele terminasse comigo; nem pensei nessa possibilidade. Se estivesse sóbria teria pensado. Não dava a mínima para sua frustração, para sua contrariedade, para o que quer que fosse. Ele teria que me prometer que dormiria noutro quarto durante os dias com os filhos.
          É obvio que prometeu tudo o que eu queria que prometesse. Somente ao me recuperar do pilequinho, no dia seguinte, é que percebi o que ocorrera de fato. Tínhamos um relacionamento recentemente iniciado, frágil, ainda sem a consistência que o tempo lhe empresta; a pressão que fiz pusera e ainda punha tudo em risco. O que ele mais queria era sossego, paz, tranqüilidade; e eu bisonhamente lhe tirara tudo isso na noite anterior. Acordei com a nítida sensação de que tudo estaria terminado mal começara. Precisava arranjar um jeito de consertar o resultado de minha intempestividade. 

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