sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Rejeições


Minha intemperança chegou ao ponto – somente agora lembrei-me de mais essa incontinência – de eu determinar que ele deveria me ligar todos os dias durante os quatro dias em que lá estivesse.
            É claro que ele menosprezou solenemente esta minha “determinação”: - ligou-me apenas uma vez, quando já ia o segundo dia. Contou-me que tudo estava bem e que sentia saudades de mim. Senti em sua voz que seu coração falava. Isso significava que todos os meus temores eram infundados. Derreti-me em declarações de amor e desejos de que logo voltasse. Sóbria, utilizando-me de minha sensatez e perspicácia, nada cobrei. Confesso que uma leve apreensão me invadiu nos dois dias que se seguiram por ele não ter ligado, mas procurei afastar esses pensamentos trabalhando, estudando e saindo com amigos nas horas de folga.
            Ele chegou na segunda – viajara na quinta da semana anterior. Eu sabia em qual companhia aérea e a hora em que ele chegaria. Queria fazer-lhe uma surpresa. Pedi a Mariana, a mais louca de minhas amigas, que comigo fosse ao aeroporto buscá-lo. Ela topou na hora. Ainda bem que o voo chegaria à tarde, o turno em que trabalhava na agência turística de Mariana. O tempo estava quente e no céu brilhava um azul tão anil que nos tirava o fôlego.
            Quando Antônio apareceu no portão de desembarque e nos viu sorridentes e sapecas, abriu um amplo e franco sorriso. Abracei-o forte e ele puxou-me pela cintura encostando seu corpo contra o meu suavemente, mas firme. Assim ficamos alguns eternos segundos e senti-me tão acolhida e aceita que tudo o que acontecera dias antes parecia agora uma grande tolice. Eu não sabia então, mas o futuro me mostraria que eu não estava preparada para me relacionar com um homem que já fora casado.
            Nós o levamos à moradia do hospital e Mariana disse-me que eu não mais precisaria voltar à agência. Fiquei com ele o resto da tarde e à noite. Não toquei em assunto relacionado àquela viagem. Eu não queria saber de seus filhos nem como eles estavam. Na verdade, hoje sei, sentia um enorme ciúme deles. A verdade é que era mais do que ciúmes; desejava que eles não existissem.
Se me perguntassem por que eu não saberia que resposta dar. Não era minha intenção ter filhos um dia e, portanto, a explicação não seria por aí. Estava, de fato, dividida porque eu desejava ardentemente que ele fosse um cara livre e desimpedido. Queria que ele jamais houvesse sido casado um dia, que não tivesse filhos. Sou obrigada a admitir que eu preferiria que ele não tivesse um passado.
Eu também ainda não sabia, mas estava semeando em meu próprio coração um sentimento de rejeição por pessoas que lhe eram extremamente caras. Eu não podia esperar que homem nenhum renegasse sua prole para satisfazer os caprichos de uma mulher, mesmo que a amasse muito. Nenhum amor pode cobrar tão elevado tributo. Porém, eu tinha apenas 20 ou 21 anos à época. Sendo filha única de um casal problemático, eu mesma era um poço de sentimentos gerados pela rejeição, pelo desamor, e sensação de abandono afetivo. Toda essa carga estava para ser lançada naquele relacionamento que, no momento, era perfeito. A prova viria no futuro.
Basicamente não sou uma mulher ciumenta. Meus dotes naturais, sob todos os aspectos do que uma mulher possa oferecer de atraente a um homem, me dão a segurança necessária em relacionamentos amorosos. Sandro e Kleber, meus dois últimos namorados, até hoje seriam capazes de voltar para mim se assim o quisesse. Kleber tornara-se um irmão para mim, mas posso assegurar que a recíproca não seria verdadeira. Para ele eu ainda seria a mulher com quem estaria até hoje. Sandro queria ser meu marido, mas não via nele a maturidade e a inteligência que buscava em um homem.
Com Antônio eu vivia uma experiência completamente nova. Sendo dezessete anos mais velho, era o homem com quem nunca sonhara mas o arrebatamento com que me conquistou em sua simplicidade e inocência me dizia que era ele a pessoa certa para mim. Esse sentimento era tão forte que eu arriscava dizer que ele era o homem de minha vida. Quando certa vez lhe disse isso, ele ingenuamente me perguntou: -“E existe isso de ‘homem da vida’ de alguém”? Às vezes dizemos tanto uma coisa que acabamos por acreditar nela, e no final acontecem duas coisas: frustramo-nos quando descobrimos que de fato isso não existe e ajudamos a contribuir para que o outro desacredite em quem posteriormente o disser. Não que desilusões não tenham o seu lado positivo, mas quando ela flui e vem através de nós nos causa um mal estar desnecessário e entristecedor.
Enquanto estávamos aqui, em minha cidade, sob a proteção de meu meio e dos meus, fomos felizes além do que se possa merecer. Cada dia eu deixava de lembrar como deveria que aquela situação era temporária. Meu esquecimento quanto a isso só é atribuível a uma proteção de que necessitava para viver aquele amor. Eu eternizava os momentos, os lugares, os encontros, as noites em que dormia com ele, tudo. Nada daquilo acabaria; permaneceria exatamente da mesma forma.
Certa vez, na boate, Mariana, que em suas loucuras arranjava tantos namorados quantos pudesse e desse conta, disse em alto e bom som: -“Um dia, Dô vai casar com Antônio e sempre iremos visitá-los nas férias”! Ele permaneceu calado, mas seu olhar para mim me transmitiu uma sensação de incerteza e indefinição que até então não experimentara.
Engoli a cerveja e saí dançando como se nada houvesse acontecido.     

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