segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A decisão


O verão foi implacável. Os dias mais longos prolongavam o calor, que adentrava a noite aquecendo sonhos, desilusões, amores, paixões, vontades e ânimos. Em que pese toda essa energia aparentemente incontrolável, e em alguns momentos o era de fato, os dias eram lindos. A abóbada celeste se ampliava, parecendo não ter fim; a luminosidade a fazia brilhar como pura safira sobre toda aquela imensidão de lagoas, mares e montanhas, dando a todo o conjunto uma reluzente e nítida transparência de cores; o verde da floresta movia-se como uma enorme alcatifa de veludo, crispado aqui e ali pelos tépidos ventos. A cada dia o calor parecia maior.
            Eu percebia que a cada dia que passava, assim como o calor, minha ansiedade e angústia cresciam. Era um dia a menos com Antônio. Ele iria embora definitivamente no começo de março. Não havíamos ainda conversado sobre nosso futuro, sobre o que faríamos. Ele parecia se recolher em si mesmo e reservar-se a si somente a responsabilidade por essa decisão. Não dizia abertamente o que tencionava fazer, mas eu sentia que, ao que tudo indicava, eu não estava em seus planos para o futuro.
            Comecei a raciocinar que seu afastamento de casa por longo tempo, se por um lado indicaria a intenção de não mais voltar, poderia bem ter servido como um momento para avaliar a possibilidade de rever a situação a favor de uma reconciliação. Afinal, as tensões haviam sido aliviadas, as rusgas esquecidas, as mágoas perdoadas. Esse era o quadro que teimava em se apresentar à minha aguçada percepção.
            Por isso a partir de certo dia, nem lembro exatamente quando, passei a querer saber o que ele faria ao chegar em sua casa. Pediria o divórcio? Procuraria a reconciliação com a mulher? Que faria? Era óbvio que pelo menos ao retorno ele teria que lá fazer pousada. Sua situação financeira estava aparentemente equilibrada, mas seguramente não permitiria que ele fizesse gastos adicionais, como alugar um lugar para morar e mobiliá-lo de acordo caso resolvesse deixar a mulher. Que faria?
Todos os dias eu lhe trazia essa dúvida que me estava levando às raias da insanidade. Ele, como sempre, zangava-se comigo; alegava sua ojeriza às pressões. Dizia que tão logo tivesse uma resposta definitiva eu seria a primeira a tomar conhecimento; e, de quebra, enfatizava que reconhecia que eu não era obrigada a esperar passivamente sua decisão. Em outras palavras, deixava-me à vontade para desmanchar com ele. Transmitia-me isso claramente, e concluía: -“Entenderei perfeitamente”! Era óbvio que se aproveitava de tudo o que eu sentia por ele. Sabia que eu não seria capaz. Ou isso ou ele estaria sacrificando seu coração em função do que a razão lhe impunha. Eu saberia em breve.
A dois ou três dias de sua partida, no lotação, ele me comunicou sua decisão.
            -“Olha, Dô, eu pensei bastante e resolvi que o melhor a fazer é desmancharmos”.
            Meus olhos encheram-se de lágrimas, mas eu procurava me manter calma. Só a idéia de ficar longe dele me dava náuseas. Meu castelo começou a desmoronar bem diante de mim sem que eu nada pudesse fazer, embora tentasse. Ele continuou:
            -“Não acho que seja honesto seguir esse namoro uma vez que não sei o que acontecerá quando voltar para casa”.
Ele estava visivelmente abalado e pensei ou imaginei ter visto uma umidade excessiva em seu olhar. Não havia muita gente no ônibus, de modo que podíamos conversar à vontade. Até hoje suspeito que ele tenha resolvido ter essa conversa ali a fim de inibir qualquer atitude mais temperamental de minha parte. Mal sabia ele que minhas forças chegavam à exaustão. A única coisa que o ônibus estava conseguindo inibir era minha vontade de chorar compulsivamente.
-“Estou sendo o mais franco que posso com você”, foi sua última frase.
Abri a bolsa e puxei de lá um lenço de papel para enxugar o rosto. Pensei por alguns segundos em tudo aquilo e concluí que o assunto era mesmo uma complicação só. Embora meu egoísmo de filha única estivesse sempre a postos para entrar em ação e exigir para mim tudo o que entendia meu de direito, sabia que para ele deveria também estar sendo muito difícil me deixar. Eu não tinha a menor dúvida de que ele me amava. Sua visível perturbação o denunciava. Isso, preciso reconhecer, era uma gota de alívio para mim. As saudades inexoráveis se achegavam por antecipação. Dali a poucas horas ele iria embora sem sabermos se um dia voltaríamos a nos encontrar.
Chegamos à minha casa ao início da noite. Mamãe nos fez um café bem forte e momentaneamente esquecemos a tragédia que se abatia sobre nós. Eu não sofria sozinha; nele também doía. Procurávamos ficar juntos, trocar beijos, abraços, olhares... A única coisa da qual não falávamos era de planos. Não tínhamos futuro. Estávamos repletos de passado, um delicioso passado; ao passo que em poucas horas nosso futuro chegaria para nos alvejar de morte enquanto casal.
Éramos como moribundos do amor, ainda que ele pudesse nos salvar se a distância se tornasse um fardo demasiado pesado para suportar. Todas as explicações que eu buscava se perdiam nas palavras ditas por ele no ônibus. Ele estaria sendo impelido a desmanchar um relacionamento – na verdade um casamento – e iniciar outro. Sim, porque se porventura ele me convidasse a morar com ele em sua cidade, num eventual fim de seu casamento, eu iria como sua mulher. Para mim essa possibilidade parecia cada vez mais remota.

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