O verão foi implacável. Os dias
mais longos prolongavam o calor, que adentrava a noite aquecendo sonhos,
desilusões, amores, paixões, vontades e ânimos. Em que pese toda essa energia
aparentemente incontrolável, e em alguns momentos o era de fato, os dias eram
lindos. A abóbada celeste se ampliava, parecendo não ter fim; a luminosidade a
fazia brilhar como pura safira sobre toda aquela imensidão de lagoas, mares e
montanhas, dando a todo o conjunto uma reluzente e nítida transparência de
cores; o verde da floresta movia-se como uma enorme alcatifa de veludo,
crispado aqui e ali pelos tépidos ventos. A cada dia o calor parecia maior.
Eu
percebia que a cada dia que passava, assim como o calor, minha ansiedade e
angústia cresciam. Era um dia a menos com Antônio. Ele iria embora
definitivamente no começo de março. Não havíamos ainda conversado sobre nosso
futuro, sobre o que faríamos. Ele parecia se recolher em si mesmo e reservar-se
a si somente a responsabilidade por essa decisão. Não dizia abertamente o que
tencionava fazer, mas eu sentia que, ao que tudo indicava, eu não estava em
seus planos para o futuro.
Comecei
a raciocinar que seu afastamento de casa por longo tempo, se por um lado
indicaria a intenção de não mais voltar, poderia bem ter servido como um
momento para avaliar a possibilidade de rever a situação a favor de uma reconciliação. Afinal, as tensões haviam sido aliviadas, as rusgas esquecidas, as
mágoas perdoadas. Esse era o quadro que teimava em se apresentar à minha
aguçada percepção.
Por
isso a partir de certo dia, nem lembro exatamente quando, passei a querer saber
o que ele faria ao chegar em sua casa. Pediria o divórcio? Procuraria a
reconciliação com a mulher? Que faria? Era óbvio que pelo menos ao retorno ele
teria que lá fazer pousada. Sua situação financeira estava aparentemente
equilibrada, mas seguramente não permitiria que ele fizesse gastos adicionais,
como alugar um lugar para morar e mobiliá-lo de acordo caso resolvesse deixar a
mulher. Que faria?
Todos os dias
eu lhe trazia essa dúvida que me estava levando às raias da insanidade. Ele,
como sempre, zangava-se comigo; alegava sua ojeriza às pressões. Dizia que tão
logo tivesse uma resposta definitiva eu seria a primeira a tomar conhecimento;
e, de quebra, enfatizava que reconhecia que eu não era obrigada a esperar
passivamente sua decisão. Em outras palavras, deixava-me à vontade para
desmanchar com ele. Transmitia-me isso claramente, e concluía: -“Entenderei
perfeitamente”! Era óbvio que se aproveitava de tudo o que eu sentia por ele.
Sabia que eu não seria capaz. Ou isso ou ele estaria sacrificando seu coração
em função do que a razão lhe impunha. Eu saberia em breve.
A dois ou três
dias de sua partida, no lotação, ele me comunicou sua decisão.
-“Olha,
Dô, eu pensei bastante e resolvi que o melhor a fazer é desmancharmos”.
Meus
olhos encheram-se de lágrimas, mas eu procurava me manter calma. Só a idéia de
ficar longe dele me dava náuseas. Meu castelo começou a desmoronar bem diante
de mim sem que eu nada pudesse fazer, embora tentasse. Ele continuou:
-“Não
acho que seja honesto seguir esse namoro uma vez que não sei o que acontecerá
quando voltar para casa”.
Ele estava
visivelmente abalado e pensei ou imaginei ter visto uma umidade excessiva em
seu olhar. Não havia muita gente no ônibus, de modo que podíamos conversar à
vontade. Até hoje suspeito que ele tenha resolvido ter essa conversa ali a fim
de inibir qualquer atitude mais temperamental de minha parte. Mal sabia ele que
minhas forças chegavam à exaustão. A única coisa que o ônibus estava
conseguindo inibir era minha vontade de chorar compulsivamente.
-“Estou sendo
o mais franco que posso com você”, foi sua última frase.
Abri a bolsa e
puxei de lá um lenço de papel para enxugar o rosto. Pensei por alguns segundos
em tudo aquilo e concluí que o assunto era mesmo uma complicação só. Embora meu
egoísmo de filha única estivesse sempre a postos para entrar em ação e exigir
para mim tudo o que entendia meu de direito, sabia que para ele deveria também estar sendo muito difícil me deixar. Eu não tinha a menor dúvida de que ele me amava.
Sua visível perturbação o denunciava. Isso, preciso reconhecer, era uma gota de
alívio para mim. As saudades inexoráveis se achegavam por antecipação. Dali a
poucas horas ele iria embora sem sabermos se um dia voltaríamos a nos encontrar.
Chegamos à minha
casa ao início da noite. Mamãe nos fez um café bem forte e momentaneamente esquecemos
a tragédia que se abatia sobre nós. Eu não sofria sozinha; nele também doía. Procurávamos
ficar juntos, trocar beijos, abraços, olhares... A única coisa da qual não falávamos
era de planos. Não tínhamos futuro. Estávamos repletos de passado, um delicioso
passado; ao passo que em poucas horas nosso futuro chegaria para nos alvejar de
morte enquanto casal.
Éramos como moribundos
do amor, ainda que ele pudesse nos salvar se a distância se tornasse um fardo demasiado
pesado para suportar. Todas as explicações que eu buscava se perdiam nas palavras
ditas por ele no ônibus. Ele estaria sendo impelido a desmanchar um relacionamento
– na verdade um casamento – e iniciar outro. Sim, porque se porventura ele me convidasse
a morar com ele em sua cidade, num eventual fim de seu casamento, eu iria como sua
mulher. Para mim essa possibilidade parecia cada vez mais remota.
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