Vovô já tinha 84 anos quando adoeceu. Nossa sorte foi minha tia conhecer o doutor Vaz, um dos chefes do Serviço de Cirurgia do hospital. Examinou-o no ambulatório e concluiu – ele corria o risco de perder a perna. O diabetes faz isso: entope as artérias do corpo. Estavam entupidas as artérias da perna direita de vovô. Conseguimos interná-lo, com a providencial ajuda do doutor Vaz, tão logo surgiu uma vaga no serviço. Seria preciso, nos disseram, estudar bem o seu caso, mas sabíamos que somente uma operação lhe poderia salvar o membro.
***
Sandro era lindo – alto, forte, moreno claro, lutador de jiu-jítsu. E, por isso mesmo, era um narcisista de marca maior. Ele queria casar, mas nosso romance estava desgastado havia muito tempo e eu mesma tentei desmanchá-lo inúmeras vezes; mas ele resistia e sempre conseguia me demover da idéia. O que ele fazia para conseguir isso? Simples. Seduzia-me com sexo gostoso.
Eu, apesar de meus 20 anos, sabia que não mais o amava, e já havia lhe falado a verdade, mas ele não acreditava. Hoje sei as razões pelas quais ele não acreditava em mim: eu sempre cedia aos seus encantos na cama. Além disso, ele, como eu, era filho único e acredito que acumulara experiências que fomentaram sua refratariedade em ser contrariado. Demorou até que, enfim, consegui pôr de fato um ponto final naquela história. Não estava disposta a transformar o que sentira por ele um dia numa espécie de vício. Isso aconteceu cerca de um ano antes de vovô adoecer.
Durante esse último ano fiquei absolutamente sozinha.
Antes de Sandro eu namorara Kleber. Ele fora o meu mais duradouro namorado. Ao final nos tornáramos amigos, quase irmãos; tanto que meus pais têm por ele até hoje um apreço especial, como se Kleber fosse, de fato, seu filho. Como já disse, sou filha única e talvez isso explique o sentimento de deles por Kleber, embora seu relacionamento fosse um inferno. Não consigo imaginá-los tendo dois filhos. Afinal, bem sei que nasci por um "descuido" de minha mãe. Ela engravidou de mim à revelia de papai e escondeu sua gravidez até as vésperas de meu nascimento. Pode parecer um truque pouco possível de ser usado aos dias de hoje, mas ela conseguiu. Meu pai, então, tomou-a como esposa, já que seus pais eram muito amigos e ele não queria contrariar ninguém. Isso explica porque sempre viviam às turras – ela o amava, mas ele nunca a amou. O casamento fora a maneira que ele encontrara para deixar ambas as famílias satisfeitas. Por ele eu não existiria, nem mamãe jamais teria sido sua mulher.
Estar esse ano sozinha fora a escolha que eu fizera a fim de me dedicar aos estudos e a algum trabalho que eventualmente conseguisse. Minha intenção era assim permanecer por um longo período. Eu cursava duas faculdades, uma pública e uma privada, e não tinha a menor intenção de permitir que meu pai me dissesse "não!" por não poder pagá-la. Nossa situação financeira até aqui havia sido sempre difícil, mas eu estava decidida: faria também a faculdade particular custasse o que custasse, e concluiria ambas.
Toda a minha vida vendo minha mãe depender de meu pai me fez sentir asco por mulheres que encontram na dependência masculina a garantia da permanência de seu homem. Pouco depois aprendi que mesmo os mais nobres homens não permanecem ao lado de mulheres dependentes, pois foi exatamente o que aconteceu com mamãe. Eu não iria jamais depender financeiramente de nenhum homem. Portanto, era preciso arranjar trabalho para pagar a faculdade particular, e continuar os estudos na pública. E foi o que fiz.
A doença de vovô veio pôr uma nuvem negra a pairar sobre a família e sobre meu estado emocional e mental. Minha preocupação com ele me tirava a concentração e a tranqüilidade necessárias a uma vida já corrida como a minha. Eu estudava pela manhã e à noite, e trabalhava à tarde. Fazíamos rodízios na família para fazer companhia a vovô no hospital. Mesmo Kleber se prontificou a ficar com ele algumas noites se preciso fosse.
Os primeiros dias de internamento foram os piores. As incertezas inerentes a essas situações ampliam nossa angústia, fragilizam ainda mais a família e levam a sofrimento antecipado por um evento ou resultado que se teme, e que inicia a se desenhar como uma realidade bem provável.
Apesar de todo empenho, carinho e dedicação do doutor Vaz, no hospital público o doente não chega a ter um médico exclusivo. Lá o paciente não é do médico fulano de tal; lá o paciente é do hospital. Vários médicos cuidam do paciente e nenhum lhe é, como já enfatizei, exclusivo. Assim, tive dificuldade em aceitar essa brutal e impessoal realidade. Não entendia como isso seria possível e confesso ter-me revoltado várias vezes com essa maneira de ser das coisas.
Após alguns dias no hospital, eu ainda não conhecera todos os médicos responsáveis por meu avô. Aqueles com quem já conversara haviam me falado que ainda estavam por tomar uma decisão, mas nenhum deles se prontificou a arriscar uma opinião pessoal. Percebia que havia em torno de seu caso uma indefinição, uma espécie de expectativa por parte dos especialistas, como se, após feitos todos os exames e avaliações, eles ainda não soubessem que caminho tomar.
Isso sem falar que eu notava nitidamente a maneira como eles me olhavam. Eram olhares que me desnudavam, que me despiam, que me transmitiam exatamente o que ia em suas cabecinhas de homens safados: eles me desejavam. Diria sem medo de errar – todos eles fariam tudo para sair comigo.
Compreendia perfeitamente a dificuldade que eles tinham em lidar com uma jovem e linda mulher em seu ambiente de trabalho, o hospital, onde o comportamento dos profissionais deve primar pela seriedade e decência. Parece-me óbvio que certas tentações sejam mais propensas a acometer os médicos mais jovens, inexperientes, alguns já casados mas ainda impressionáveis e desejosos por uma mulher a mais em suas vidas. Eles eram médicos residentes, em treinamento na especialidade. O mesmo não acontecia com os médicos antigos, homens sérios e compenetrados com o seu trabalho.
Assim, é bem possível que essa falta de opinião não fosse, de fato, uma falta de opinião, mas uma forma que eles encontravam de se valorizar perante a sensual e bela mulher que sou. Queriam me impressionar. Passavam mais tempo do que eu supunha necessário a me expor o problema de vovô, certamente subqualificando minha inteligência e minha perspicácia. De propósito eu lhes olhava nos olhos quando com eles conversava. Minha intenção era desconcertá-los.
Minha relativa juventude não me fazia menos questionadora e mais tratável. Ao contrário, sei ser intragável quando as coisas não andam da maneira que julgo ser a correta. Minha inteligência é ágil e aguda, e ninguém consegue me convencer facilmente quando a lógica é calcada a pés em explicações que não explicam. Por isso minha paciência estava a ponto de se esgotar com aquela lengalenga. Quando não podia ir ao hospital para saber notícias e visitar meu avô, perguntava a quem lá estivera o que de novo havia; e invariavelmente algum membro da família – minha tia, minha mãe, minha avó – me dizia que tudo estava na mesma...
...até o dia, uma quinta-feira, em que resolvi lá ir com tia Moema e "esganar" o primeiro médico que encontrasse do time que cuidava de meu avô. Em particular, eu estava fula da vida com aquele tal de doutor Antônio, o único médico da equipe que eu ainda não tivera o desprazer de confabular. Não queria falar com nenhum dos outros com quem eu já falara. Estava na intenção daquele doutor Antônio. Se o pegasse à minha frente, ele ouviria poucas e boas. Eu o queria como boi de piranha. Onde já se viu? nunca o vira mais gordo! Havia de ser como os outros – um almofadinha impostado, metido a besta e a galã irresistível. Vai ver por isso ainda não aparecera na enfermaria todas as vezes que eu lá estivera à hora da visita.
Disse a ela: -"Tia, vamos agora ao hospital qu'eu quero saber, de uma vez por todas, o que estão planejando fazer com meu avô". Eu sabia que ela já devia ter conhecido o tal doutor Antônio e pedi-lhe que, de preferência, conversássemos com ele, que ela me avisasse se o visse por lá. Pensava comigo, em minha contida indignação: "esses médicos são um bando de incompetentes paqueradores, isso sim!"
Já no hospital, quando íamos subir no elevador, minha tia me puxou pelo braço para impedir que eu entrasse. Disse: -"O doutor Antônio está ali!", e apontou na direção em que o vira. Saí dali arrastando-a pela mão. Não queria perder a chance de olhar nas fuças do tal doutor Antônio.
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Quando pus nele os olhos e ele finalmente falou, respondendo ao que minha tia perguntava, percebi-lhe uma doçura desconcertante. Ele transmitia segurança, conhecimento e coragem. Percebi também que não o fazia de propósito; era inerente a ele, era característica sua. Não estava fazendo pose nem demonstrava empáfia.
Disse, olhando para nós, nos olhos de cada uma de nós: -"Não sei o que pensa o chefe, mas, em minha opinião, o melhor para o senhor fulano é a amputação", e explicou que os exames de imagem realizados para estudo e planejamento pré-operatório demonstravam claramente que a tentativa de colocar uma ponte de safena na perna de meu avô implicava uma elevada chance de não dar certo. Explicou-nos também que, logo mais à tarde, fariam uma amputação de dois dedos de seu pé, que já haviam gangrenado, e que isso seguramente também não teria um bom resultado visto que faltava-lhe sangue no membro.
Nervosa, fiquei o resto do dia no hospital esperando a operação de meu avô.
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Enquanto meu avô era operado, eu pensava naquele homem que me impressionara. Não conseguia parar de lembrar seus modos francos e gentis, sua voz pacífica e forte, seu olhar penetrante e firme. Eu não conseguira lhe olhar diretamente nos olhos como fizera aos outros, e fui obrigada a fugir de seu olhar quando ele, horas atrás, me olhou firmemente para comunicar sua opinião sobre o caso de vovô.
Ele dera todos os esclarecimentos sobre a situação e explicara tudo para mim e minha tia de modo a nos tornar possível aquilatar a natureza do problema. A simplicidade com que levara a cabo essa missão o tornou, para mim, o homem mais elegante e fino do mundo.
Ali embaixo, enquanto esperava o fim da operação de vovô, ansiava-me por seu estado durante o procedimento e minhas mãos suavam devido a outra ansiedade que, já percebia, me assaltava – queria reencontrar o doutor Antônio. Queria ter consigo para saber de meu avô mas não posso negar que queria vê-lo novamente, o quanto antes, o mais rápido possível.
Meus pensamentos eram um turbilhão de idéias, de desejos, de sentimentos que eu nunca experimentara. Nem por uma fração de segundo pensei nas decisões que tomara havia algum tempo, um ano ou pouco mais; parecia que nada mais importava e que meus planos matematicamente traçados iam sendo roubados de mim, por obra de meu coração.
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Já eram quase 8 da noite quando ele apareceu de volta na enfermaria. Corri ao seu encontro como louca; não sabia se lhe tinham amputado somente os dedos ou se já a perna. Um peso me oprimia o peito. Ele me falou, então, que tudo correra sem intercorrência e que meu avô estava na sala de recuperação e passava bem. Como fora acertado, somente alguns dedos do pé haviam sido amputados. Para amputar a perna seria necessária a autorização da família.
Disse-me que poderia ir para casa porque meu avô só desceria para a enfermaria ao dia seguinte. Um enorme alívio descansou meu espírito quando ele me olhou docemente, como se aquele olhar fosse um carinho em mim mesma, uma coisa quase física, quase corpórea, um toque real em alguma parte de meu corpo. Imaginei que ele estivesse exausto, mas nenhum sinal deu que demonstrasse isso.
Temendo que dali fosse embora e eu perdesse a oportunidade de estar com ele mais um pouco, simulei uma apreensão e um nervosismo inexistentes. Esperava que ele tomasse uma atitude que prolongasse aquele encontro, e ele acabou por dizer que percebia que eu estava muito tensa, e me sugeriu descermos à cantina do hospital para um café ou chá.
Aceitei incontinenti.
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Nosso encontro na cantina durou cerca de hora e meia; falamos sobre tudo, menos sobre vovô e sua saúde. Eu senti como se tudo, o tempo e o universo, houvesse parado e só aquele homem e eu existíssemos. Contei-lhe sobre meus planos, sobre minha vida, sobre meus amigos. Ele foi mais reservado e, embora tenha relatado alguma coisa sobre si, procurava manter uma certa distância da neta de seu paciente. Dali a pouco minha avó apareceu chamando-me a irmos embora.
Tentei resistir, mas não consegui. Algo me impelia a ele. Algo me lançava sobre ele. Antes de me despedir perguntei-lhe se não poderíamos nos ver fora do hospital no dia seguinte, uma sexta. Ele concordou e marcamos um chope para o final da tarde, ali mesmo, próximo ao hospital.
Chegando à casa me dei conta – estava apaixonada. Não havia explicação, não havia lógica, não havia nada compreensível naquele dia louco. Aquele homem me arrebatara num único dia, em poucas horas, na primeira conversa que tivemos, e antes disso, e depois disso. Eu, que queria fulminá-lo com o veneno de minha frustração; que queria me pôr à distância de qualquer romance e nem para isso me esforçava por estar cansada dos homens lugares-comuns; que queria humilhá-lo na mesma panela dos idiotas que me devoravam com seus indiscretos olhares; eu sucumbi àquela paixão que me invadiu sem permissão e sem pudor.
Ao dia seguinte, antes do chope, convidei-o ao motel mais próximo, e tivemos o amor mais incauto e súbito de nossas vidas. Até hoje me pergunto onde arranjei coragem para esse convite. Eu não tinha certeza então, mas após o amor passei a suspeitar que encontrara o homem de minha vida.
Dolores Peixoto
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